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A ‘involução genética’ da pecuária nacional

Selecionadores de todo o país e representantes de diversas raças pedem mudanças na legislação, reivindicam direitos dentro do livre comércio pregado pelo atual governo e questionam os privilégios concedidos aos animais de sumário pelo Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA)

Uma lei cinquentenária, assinada por Ernesto Geisel, ainda rege todo o mercado de material genético do Brasil e engessa o processo de melhoramento da pecuária bovina. O texto proíbe a comercialização de sêmen de todos os touros puros registrados – se estes não estiverem dentro de algum programa de avaliação – e legitima a exclusividade de venda de palhetas de animais com qualquer tipo de avaliação, mesmo que eles não tenham registro de pureza racial.

Criadores tradicionais e técnicos que trabalham para preservar o banco genético das raças zebuínas, por exemplo, não concordam com essa regra, e um movimento para reivindicar direitos contemplados em conceitos de livre comércio começa a tomar corpo no universo da pecuária seletiva.

“Esse negócio de ficar impondo excesso de regulamentação e que só pode comprar sêmen de animal que preencha certos requisitos não dá certo. Quem quer comprar sêmen do touro assim ou assado, deveria ter o direito de escolha. O criador tem que ser livre para trabalhar e usar o material genético que quiser e achar o que é melhor para o rebanho dele. Penso que o livre mercado é soberano e deve prevalecer”, ressalta Tonico de Carvalho, membro de uma das famílias mais tradicionais do Nelore e que realiza um dos mais antigos leilões da raça na Fazenda Brumado, em Barretos (SP). A seleção Brumado é uma das que prima pelos avanços fundamentados em pureza racial.

Outra abordagem dos membros desse movimento questiona a eficácia das informações divulgadas por sumários particulares que não sofrem nenhum tipo de auditoria oficial. Os programas independentes estimulam a disseminação de sêmen de touros produzidos apenas por cálculos matemáticos, além de exporem a prática de evasão fiscal por parte do Ministério, que a partir do momento que chancela os produtos desse mercado abre mão do recolhimento de ICMS. “Eu acho isso um absurdo. Essas avaliações que a gente vê em um monte de sumários por aí não estão condizentes com a realidade. Animais que são bem avaliados em um ano, no ano seguinte somem. O importante é um touro ter um registro genealógico comprovando que é puro de origem. O mercado é soberano, mas acho muito pior sair vendendo sêmen de boi cara limpa”, diz o pecuarista Fernando Zamora, da Fazenda Brasil, que fica no município de Sena Madureira (AC).

Um fato que deixou explícita a incoerência dessa situação foi produzido pela Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), em março desse ano. No treinamento interno para atualização e padronização dos conceitos de seleção dos jurados da entidade, o rebanho apresentado como referência era do time de um criador que seleciona por pureza racial há mais de 60 anos. Os animais da raça Nelore da Estância 2L, de Adir do Carmo Leonel, foram considerados modelo no evento, principalmente pelas qualidades relacionadas à produtividade. “Eu acho que é uma sequência de erros. Nosso direito tem que prevalecer com a livre concorrência, aconteça o que acontecer. Uma lei em que um animal puro e reconhecidamente melhorador é proibido de vender, com aval do Ministério, precisa ser revista. Tenho certeza de que a ministra vai achar um caminho e uma solução rápida para esse processo ter transparência dentro do MAPA”, analisa Paulo Leonel.

O tradicional Leilão do Fazendeiro, que teve a sua 29ª edição realizada há cerca de 60 dias, também exemplificou esse problema. No evento, que conquistou para a cidade de Camapuã, no Mato Grosso do Sul, o título de Capital do Bezerro de Qualidade, o lote campeão de 2019 tinha genética de um touro PO sem avaliação. Os 25 animais, com peso médio de 368 kg, filhos de Majavadhi do Arroio, do criador Altair de Pádua Mello, também foram os mais valorizados do remate. “Investi alto nesse touro que tinha qualificação. Ele foi muito bem aceito no mercado e tem produção comprovada em muitas fazendas de cria do Centro-Oeste, como da proprietária do lote premiado em Camapuã. O touro mantém demanda pela qualidade dos filhos, mas agora não posso mais vender sêmen do animal. Não sou contra nenhum programa de avaliação, mas quero ter o direito de trabalhar meus animais, que todo mundo quer e eu acho que são bons. O MAPA tem que exercer controle sanitário sobre a procedência, por exemplo, sem interferir em questão comercial”, explica o nelorista, que é proprietário da Fazenda Cacheado, de Aquidauana (MS).

Os reflexos da involução genética do rebanho, respaldada pela ingerência burocrática, são sentidos em diferentes níveis de descontentamento com a qualidade do gado que chega ao final da cadeia produtiva. Da Fazenda Conforto, de Nova Crixas (GO), o diretor do confinamento, Claudio Braga, comenta que o rebanho precisa de padronização e diz que a qualidade dos produtos independe de avaliação. “Não adianta comprar sêmen de um animal que tem essas DEPs quando ele não responde no acabamento na hora do abate. Para a indústria, que compra um bezerro para transformar ele em um boi, o importante é como e quando este chega ao abate. Nós temos que entregar um animal novo com qualidade e com acabamento. Não dá para ter um boi que começa a depositar gordura com 27@. Essa genética do Adir, com a qual temos um convênio e trabalhamos muito atualmente, é o tipo que encaixa na nossa proposta. Com 20@ ou 21@, as peças estão padronizadas e a carcaça está pronta com a cobertura de gordura ideal”, avalia o responsável pela compra e engorda de 100 mil bezerros por ano.

Em diversos espaços de redes sociais, como o “Grandes Raçadores Nelore” no Facebook, que tem mais de seis mil participantes, o assunto é debatido de forma aberta e prolongadamente, com postagens que recebem centenas de comentários. Muitas citações deixam clara a existência de um sentimento comum de que as instituições oficiais privilegiam determinado tipo de animal e de seleção, e que o argumento da promoção do melhoramento do rebanho camufla interesses pessoais dentro do MAPA, para manter a reserva de mercado dos touros de números dos programas. O médico-veterinário Arley Coelho da Silveira, da Fazenda Cabeceira, em Paraíso das Águas (MS), cria Nelore há 30 anos. O profissional é menos ativo na internet, mas tem as opiniões sempre compartilhadas pelos seus pares. “Já podemos notar a descaracterização avançando e sendo considerada como de menor importância. Muitos são levados pelo propósito comercial. Há inúmeros entendidos e muito animal que já não tem nome. A essência do Nelore se esvaindo, escorrendo como água entre os dedos afoitos em busca do dinheiro a todo custo. Muita teoria relativa querendo posar de absoluta e muitos desconhecedores dependurados nas réguas”, escreveu em um dos seus comentários.

A discrepância gerada pela lei afeta criatórios de outras raças além da Nelore, em que os selecionadores também enfrentam a mesma dificuldade e precisam engolir o descontentamento com as entidades que deveriam defender os interesses globais dos criadores e de seus associados, e não apenas de uma parcela deles.

Antônio Zanatta, diretor técnico da AssoGir (Associação Brasileira dos Criadores de Gir) e também criador, concorda que há o risco de um grande retrocesso na evolução do plantel nacional. “Temos ferramentas disponíveis. Você pode pegar um rebanho que só teve avaliação fenotípica, ou seja, que nunca teve nada mensurado em termos de ganho de peso, e identificar os de melhor Área de Olho de Lombo (AOL), que tem uma correlação enorme com volume de carcaça, e esse animal passaria isso à sua progênie, pois é uma característica de alta herdabilidade. Outra característica é a cobertura de gordura. Animais com facilidade em acumular gordura produzem filhos mais precoces sexualmente, o marmoreio dá mais sabor à carne e valor agregado ao produto, e assim por diante. Existem muitos animais com excelente potencial,  que poderiam contribuir em muito para a pecuária nacional e que estão sendo subutilizados em razão das tais barreiras, que não permitem sua utilização em massa. Esses touros poderiam inclusive aumentar a variabilidade genética das populações, diminuindo a endogamia e aumentando a variabilidade gênica dos rebanhos. Leis são boas, mas, ao longo do tempo, devem ser atualizadas e adequadas às necessidades que surgem”.

Outro girista tradicional que engrossa o coro dos críticos da questão é o Melhor Criador e Melhor Expositor há 12 anos consecutivos. José Luiz Junqueira Barros é membro do Conselho Consultivo da ABCZ e presidente da AssoGir. “Nós já fizemos alguns estudos e manifestamos nosso pensamento. Eu tenho touros que são grandes campeões nacionais, que produzem grandes campeões nacionais e progênies igualmente campeãs e, por essa lei, eles devem ficar para trás, desprezados na seleção do rebanho. O criador tem todo o direito de usar a genética que o agrada e que acha que é boa para o rebanho dele. Algumas raças usam material de touros antigos, de quando nem existiam essas regras. Impor essas questões de forma burocrática, de dentro do escritório, é perigoso. Corre-se o risco de acontecer a mesma situação do Nelore, que está sendo descaracterizado e se desmanchando”, finaliza o presidente da AssoGir.

O criador Antônio Renato Prata, da Prata Agropecuária, de Presidente Prudente (SP), mantém-se bem longe de discussões do mundo virtual, mas tem o mesmo pensamento. O zebuzeiro de 90 anos, que é um dos pioneiros da raça Brahman e também cria Nelore Mocho, resume a questão com poucas palavras. “Acho que o Ministério não tem que se envolver nesse tipo de processo. O comprador deve decidir o que comprar. Simples assim”, finaliza o selecionador conhecido como “Pratinha”.

A assessoria de imprensa da ABCZ informou que representantes da entidade estarão reunidos com a Ministra Tereza Cristina em breve e esse é um dos temas elencados para a pauta.

O MAPA foi contatado por e-mail, mas não emitiu parecer.

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